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Migalhas de pão

Intervenção da Presidente da ASF na Conferência Anual da ASF 2024

19-11-2024

Muito bom dia a todos.

É com enorme satisfação que, em meu nome e do Conselho de Administração, dou as boas-vindas a todos os participantes nesta Conferência Anual da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) e agradeço a presença de todos.

A realização da conferência anual da ASF no dia 19 de novembro tornou-se uma tradição que partilhamos ser um marco importante para esta Autoridade.

Permitam-me dirigir uma especial saudação e agradecimento ao Senhor Ministro de Estado e das Finanças, Professor Joaquim Miranda Sarmento, cuja presença nesta sessão de abertura muito nos honra.

Agradeço também aos Senhores Conferencistas e Moderador, por terem aceitado o convite para enriquecer o debate importante que vamos hoje fazer, trazendo as suas experiências, visões e conhecimentos.

Dirijo um cumprimento especial aos representantes das Autoridades de regulação e de supervisão aqui presentes.

Minhas senhoras e meus senhores,

Nesta Conferência vamos abordar um dos temas mais prementes da atualidade: “O papel do setor segurador na gestão de riscos de catástrofes naturais”.

Vivemos tempos marcados pela intensificação de fenómenos naturais extremos, a que não são alheios os efeitos das alterações climáticas. 

Desde secas prolongadas até inundações devastadoras, passando por tempestades e incêndios florestais, os últimos anos deixaram claro que as catástrofes naturais não são mais eventos isolados e raros. 

Tornaram se frequentes, intensos e com impactos cada vez mais profundos nas economias, sociedades e ecossistemas.

A atualidade deste tema é visível, como, infelizmente, demonstram os acontecimentos recentes na região de Valência, Espanha, com inundações repentinas e severas, causadas por chuvas torrenciais que, em algumas áreas, atingiram até 445 litros por metro quadrado. 

As consequências foram trágicas, com perda de centenas de vidas humanas e danos materiais avultados em infraestruturas e património. 

Também no passado fim-de-semana assistimos, a uma escala diferente, mas ainda assim preocupante, às inundações ocorridas em vários locais do Algarve, provocadas por fortes chuvas.
No seu discurso na Cimeira de Ação Climática da COP29, a 12 de novembro, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, enfatizou a urgência de limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C, destacando que 2024 está a caminho de ser o ano mais quente já alguma vez registado. 

Apelou aos líderes mundiais que se comprometam com três principais prioridades: a redução anual de 9% nas emissões globais até 2030, a implementação de medidas de adaptação climática e de aceleração da transição energética justa e sustentável e o apoio à adaptação climática dos países em desenvolvimento e mais vulneráveis.

Os dados são preocupantes. 

De acordo com informação da Swiss Re, só em 2023, as perdas económicas globais associadas a desastres naturais atingiram 280 mil milhões de dólares, das quais apenas 35% se encontravam cobertas por seguros, revelando assim um protection gap significativo. 

Em regiões vulneráveis, onde os mercados de seguros são pouco desenvolvidos, a recuperação de comunidades afetadas por estes desastres pode demorar anos ou mesmo décadas.

Numa análise histórica, a tendência tem sido de crescimento alarmante, registando-se, desde o ano de 2005, cinco anos em que as perdas económicas decorrentes de catástrofes naturais se posicionaram acima do patamar de 300 mil milhões de dólares, quando, nas décadas precedentes, apenas por uma vez esse patamar foi ultrapassado.

Em Portugal, a nossa geografia e clima colocam-nos numa posição particularmente exposta. 

Os incêndios florestais, que marcaram tragicamente a última década, as vulnerabilidades geológicas associadas ao risco sísmico, as cheias que têm afetado algumas comunidades e a intensificação de tempestades são exemplos concretos dos riscos que enfrentamos. 

Face ao elevado e abrangente impacto potencial associado, é fundamental estarmos preparados para responder e, acima de tudo, para prevenir os piores cenários.

Acresce que estes fenómenos podem assumir proporções sistémicas, podendo afetar, em simultâneo, não só a economia real, mas também a estabilidade do sistema financeiro, ao mesmo tempo que é colocada forte pressão sobre as finanças públicas do Estado. 

O setor segurador assume um papel de destaque neste contexto, não apenas como mecanismo de proteção financeira, mas também como agente catalisador de transformação. 

Através dos seus produtos e serviços, as empresas de seguros assumem e gerem os riscos a que as empresas e famílias se encontram expostas, e que não teriam, isoladamente, capacidade para suportar. 

Desta forma, o setor segurador confere resiliência ao país, assegurando a mitigação significativa das perdas resultantes da ocorrência de catástrofes naturais e o acesso a mecanismos especializados de assistência, de avaliação das perdas e de compensação financeira aos lesados, promovendo uma recuperação mais célere do tecido económico e social.

No entanto, o papel do setor segurador não se restringe ao apoio após a ocorrência de um desastre. 

As empresas de seguros desempenham também funções essenciais nas áreas de identificação, mensuração, gestão e monitorização dos riscos e vulnerabilidades, assim como de prevenção e adaptação, incentivando, através dos seus processos de subscrição e tarifação, a adoção de comportamentos e práticas que reduzam a exposição aos riscos cobertos. 

Com efeito, ao falarmos de riscos de catástrofes naturais é fundamental que olhemos para os dois pratos da balança: a prevenção e o seguro.

Estas duas vertentes devem, o que nem sempre tem sido conseguido, andar adequadamente associadas, com pesos otimizados.

Se o seguro é um produto financeiro gerido por empresas de seguros, já na prevenção é amplo o conjunto de entidades responsáveis por esta vertente, incluindo instituições públicas.

É ainda de notar que o setor segurador é um dos maiores investidores institucionais a nível mundial, gerindo ativos que ascendem a cerca de 40 triliões de dólares. 

E assim é, também, em Portugal.

Esta capacidade coloca as empresas de seguros numa posição privilegiada para contribuir, através da alocação dos seus investimentos, para o financiamento de soluções sustentáveis e de baixo carbono, alinhadas com o objetivo de contrariar a progressão das alterações climáticas.

Como referido anteriormente, subsiste, no entanto, um elevado protection gap na cobertura seguradora de riscos de catástrofes naturais a nível mundial, conclusão que se aplica igualmente a nível nacional. 

O protection gap, que corresponde à diferença entre o potencial de cobertura de pessoas, atividades e patrimónios através de seguros, e a dimensão da cobertura realmente existente, é um tema importante que tem vindo a merecer uma crescente atenção. 

A existência de lacunas de proteção, no contexto de vários riscos, com especial destaque para os relativos a catástrofes naturais, pode expor os segurados com coberturas subdimensionadas, e as pessoas e agentes económicos que não possuem seguros, a repercussões económicas e sociais potencialmente severas. 

Estes impactos são extensíveis, também, ao próprio Estado, sempre que se verifique a necessidade de alocação de recursos financeiros para mitigação de perdas associadas a eventos de natureza sistémica. 

Tal situação onera o erário público, somando-se aos encargos inevitáveis de assistência a pessoas e bens em situação de emergência, num contexto de muito provável perda de receitas fiscais.

Ciente da importância deste tema, a ASF tem vindo, desde há alguns anos, a empreender iniciativas no sentido de identificação dos protection gaps nacionais para riscos relevantes, com os objetivos de aumentar a consciencialização da sociedade para esta problemática e de promover a reflexão sobre o desenvolvimento de soluções que permitam mitigar a consequente falta de proteção.

Por exemplo, em 2022, através de um protocolo de cooperação entre a ASF e a NOVA School of Business and Economics, foi preparado, por essa faculdade, um relatório técnico com a identificação das principais áreas onde se registam gaps de cobertura seguradora no mercado nacional, bem como a exploração dos eventuais constrangimentos que obstam ao seu apuramento mais exaustivo. 

Em concreto, foram abordados, nesse estudo, quatro principais áreas: o risco climático e de catástrofes naturais, o risco cibernético, o risco demográfico, nas vertentes da saúde e das pensões de reforma, e o risco pandémico, na vertente de interrupção de negócio em situações pandémicas.

Este estudo é publico, encontra-se disponível no Site da ASF.

No que respeita especificamente ao risco sísmico, os estudos da ASF remontam ao início da década de 2000, tendo os desenvolvimentos posteriores culminado no apoio ao Governo na preparação de um anteprojeto legislativo que esteve em consulta pública no final de 2010, o qual, no entanto, não chegou a ter seguimento, por causa das dificuldades então sentidas na conjuntura macroeconómica.

Mais recentemente, em 2023, a ASF efetuou uma recolha exaustiva de informação, junto do mercado segurador nacional, com o objetivo de atualizar esses estudos, o que permitiu verificar que o protection gap na área do risco de fenómenos sísmicos se mantém bastante elevado, estimando-se que cerca de 80% do parque habitacional nacional não dispõe de cobertura seguradora para esse risco. 

Este estudo de caracterização da cobertura seguradora nacional atual face ao risco de fenómenos sísmicos foi publicado pela ASF na análise temática do seu Relatório de Estabilidade Financeira do Setor Segurador e dos Fundos de Pensões, de abril de 2024, encontrando-se disponível no Site da ASF.

O problema deste protection gap é agravado pela elevada concentração de população e de património em zonas classificadas como de risco sísmico mais elevado.

Ainda relativamente ao risco sísmico, que é percecionado como um dos riscos catastróficos mais relevantes a que o território de Portugal se encontra exposto, tem se assistido recorrentemente ao reacender do debate em torno da criação de um sistema nacional de cobertura – infelizmente, de forma relativamente fugaz, e em reação a eventos adversos dessa natureza em geografias mais próximas. 

A criação de um tal sistema, projeto em que a ASF se encontra empenhada, perspetivando-se para breve a entrega ao Governo de um primeiro documento com propostas concretas nessa matéria, permitiria reduzir o elevado protection gap nacional existente e criar mecanismos para a acumulação de fundos ex-ante que possam ser canalizados para o ressarcimento das perdas potencialmente sistémicas decorrentes da ocorrência de um sismo.

A criação de um sistema nacional de cobertura do risco sísmico, que incluirá um fundo especificamente dedicado, pode representar um primeiro passo para a extensão posterior do sistema à cobertura de riscos climáticos. 

Sem prejuízo dos estudos técnicos que será ainda necessário realizar, a ASF irá apontar nesse sentido, no relatório que entregará ao Governo, designadamente ao nível da proposta de modelo institucional de governação do fundo sísmico, de modo a permitir uma futura gestão alargada a outros riscos de natureza catastrófica.

No âmbito dos riscos climáticos, a existência de lacunas de proteção é especialmente problemática, uma vez que os efeitos das alterações climáticas tenderão a agravar progressivamente a frequência e severidade deste tipo de eventos, pressionando a sua segurabilidade ou capacidade de cobertura através de seguros a preços comportáveis.

Com efeito, o combate às alterações climáticas não permitiu até agora contribuir para reduzir os gaps de proteção, muito pelo contrário, pelo que assistimos a um aumento de catástrofes naturais sem o correspondente aumento da sua segurabilidade.

As razões subjacentes para a existência de protection gaps podem encontrar-se do lado da oferta ou da procura.

Do lado da oferta, uma insuficiente disponibilidade ou profundidade de produtos de seguros disponíveis no mercado pode ser motivada, entre outros fatores, por dificuldades na modelização dos riscos – por exemplo, devidas à falta de informação (data gaps) e/ou à elevada incerteza ou complexidade intrínseca – e falta de capacidade dos mercados segurador e ressegurador para absorver riscos, designadamente quando estes têm potencial para assumir níveis de severidade extraordinariamente elevados.

Por sua vez, do lado da procura, uma insuficiente subscrição de seguros pelas empresas ou particulares pode ser justificada pela menor perceção da utilidade desses produtos, devido à falta de uma cultura de risco e falta de literacia financeira e/ou pelo seu custo ser considerado demasiado elevado face ao rendimento disponível.

Desta forma, podem identificar-se, desde logo, as seguintes iniciativas como de importância fulcral para a mitigação dos protection gaps existentes:

  • A recolha sistemática e detalhada de informação sobre perdas decorrentes de catástrofes naturais em Portugal, quer estas se encontrem cobertas por seguros ou não, assegurando a sua qualidade e consistência global;
  • O desenvolvimento e melhoria dos modelos preditivos de avaliação de perdas decorrentes de eventos de catástrofes naturais, incidentes sobre o território nacional, fazendo uso das novas tecnologias e aprofundando a interligação com o conhecimento científico e académico;
  • A promoção da literacia financeira específica nesta área, junto da população, fomentando uma cultura de perceção do risco que capacite para a avaliação das vulnerabilidades individuais presentes e das medidas que podem ser tomadas para as mitigar.

Adicionalmente, importa ter presente que, para riscos de natureza sistémica, pode ser inviável a sua cobertura integral exclusivamente através dos mercados segurador e ressegurador – em concreto, quando estão em causa os princípios de segurabilidade (insurability) e de acessibilidade (affordability). 

Nesses casos, a mitigação do protection gap poderá ter de considerar soluções de outra natureza, como, por exemplo, o estabelecimento de mecanismos de resiliência partilhada, designadamente programas público privados, que envolvam o setor segurador, outros stakeholders e o próprio Estado. 

Este tipo de soluções está presente em vários países, incluindo em países da União Europeia, mas não é ainda o caso de Portugal.
Deve notar-se que soluções estruturais desta natureza dependem necessariamente decisões de natureza política. 

Neste contexto, a ASF tem demonstrado, ao longo do tempo, a sua disponibilidade e empenho no apoio ao Governo, identificando os problemas e auxiliando na sua resolução, dentro da capacidade de intervenção que a lei lhe confere.

Com este enquadramento, o programa desta Conferência foi estruturado para abordar as questões mais prementes e explorar os desenvolvimentos e as melhores práticas internacionais para fazer face aos desafios colocados pelas catástrofes naturais. 

Reunimos um conjunto de reputados especialistas, cuja experiência e conhecimento irão enriquecer a reflexão que temos de fazer, coletivamente, sobre os caminhos que devemos trilhar, enquanto país, para fortalecer a nossa resiliência face a fenómenos que, cada vez mais, marcam o nosso quotidiano.

E termino.

Temos enfrentado recentemente conjunturas macroeconómicas e geopolíticas muito difíceis que nos trazem novos riscos em relação aos quais tivemos, e temos, de dar resposta.

Apesar de as adversidades e dificuldades nos consumirem muitos recursos, devemos manter, e até reforçar, o foco das nossas apostas estratégicas nos desafios estruturais e fazer deles oportunidades para nos fortalecermos e construirmos uma economia mais resiliente e sustentável com capacidade de, também, responder à incerteza.

O papel do setor segurador na gestão de riscos de catástrofes naturais convoca-nos a ter uma visão sobre o futuro, sobre o que precisamos de fazer e como fazê-lo.

A sociedade e a economia em Portugal têm à sua disposição um setor segurador que se encontra adequadamente preparado e capacitado para contribuir para esta visão de futuro.

A ASF manterá uma supervisão rigorosa, traduzindo nos seus entregáveis a excelência dos elevados níveis de conhecimento e competência das suas Equipas e a independência com que exerce a sua missão, colocando sempre em primeiro lugar o interesse público.

E agora, sim, a terminar, quero agradecer às Equipas da ASF que trabalharam para tornar possível estarmos hoje aqui reunidos. 

Muito obrigada e desejo a todos um dia muito produtivo e inspirador.
 

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